Larissa Marques

MN: Larissa, "toda vírgula é ilusão", este é o alerta de um dos teus espaços. [O mais, talvez, sejam reticências...]. Há identidade, ou só Entidade-Id? O negócio, então, qual será, para dizer? Celebrar as pulsões? Por Isso, talvez, ainda considerem Dioniso o Deus da Poesia [amalgamando-a ao Teatro]? Há alguma outra musa/ melodia a acalentar a palavra? Uma outra que você conceba, ou que te soe viva e não-tão-falsa?

LM: Penso mesmo nas coisas como brinquedos que dão prazer e ferem, não consigo imaginar nada com um só lado, sendo sinestésica como sou. Vislumbro várias dimensões que meus olhos alcançam ou não, as camadas internas e a matéria micro-universal de que somos feitos.

Acredito que há identidade se visualizar o homem como posso destrinchá-lo e identificá-lo por tipo sanguíneo, por DNA mitocondrial, digitais, carteira de identidade, CPF, CNH, cursos universitários, etc.

Mas posso dizer que nos dividimos em facetas freudianas mesmo ID, EGO, SUPEREGO. Acabamos por equilibrar papéis, viver entidades que em sua maioria são roteiros sociais, a mãe, a esposa, a amiga, a artista.

Esse papel do artista é o que se atreve a ir além do que esperam dele, nem sei se atrever é o verbo certo, porque não poderia afirmar com certeza se é uma escolha ou um fardo.

Por isso gosto muito do trabalho com teatro, é uma quebra, é onde se pode representar sem amarras com o politicamente ou socialmente correto, assim como já faço na escrita. Já tive o prazer de ser adaptada e representada no teatro e ver meus personagens com seus cavalos é algo que ainda me intriga, me fascina e fere.

Sou um ser humano torto, como todos são por não sermos feitos no molde e sim nos adaptar a eles, tentar domar a palavra é como tentar adaptar o ser humano, é algo impossível e a gente ainda tenta. Mas pra mim é mais uma maneira de me fazer entender, de falar algo que ache ser essência, é um labirinto para me mostrar e nessa quase fuga creio na palavra como musa traiçoeira, mas como amante incondicional, a perdoo e perdoo.


MN: O punk é uma reciclagem de Dioniso, ou são os restos de Dioniso clamando para serem reciclados? Qual a trilha sonora que te embalou e embala, deixando de lado a mitológica charada?

LM: Posso escolher as duas alternativas, minha influência tem amalgamas no que fui exposta, nasci em 1974 e acho difícil querer fugir das influências que tive no âmbito social que nasci e fui criada. Eu sou uma escritora bacante, ou diria punk? Não é a mesma coisa? Como não dizer que T.S. Eliot não bebeu da mesma fonte que eu? Como não dizer que Baudelaire, Jack Kerouac são ícones através de gerações e quem os teria influenciado em suas vidas bacantes? Sempre é charada. Não há como responder sem ser injusto.

Trilha sonora? Pink Floyd, Ramones, Sex Pistols, Alice in Chains, Iron Maiden, Mettalica, Sepultura, Rolling Stones, Beatles, Elvis, Titãs, Raimundos das antigas, minha trilha é rock.


MN: Qual a disciplina que a palavra ensina? [Se é que há alguma...]. É mais árdua a disciplina [algum vestígio dela que haja] na cidade do que no mato? E a lama: gruda no sapato? E a lama de Woodstock, o que fizeram com ela? Está grudada nos jeans da geração mais velha, ou já foi lavada a seco em lavanderia-de-franquia [Cinq à Sec]?

LM: Putz, essa sua pergunta engloba meu mundo! “Tudo agora ao mesmo tempo, baby”, como diria uma personagem minha. A palavra ensina pouco, o máximo que ela faz é abrir nossos ledos olhos, pois a palavra é vernáculo venéreo que contamina e dissemina seu léxico e não sai mais da gente, não sai. Disciplina, o que significa isso? O que sei é que independente de você nascer em Itumbiara, interior de Goiás ou no centro da Cult Sampa, não faz diferença nenhuma desde que seja contaminado pelo oráculo da palavra, ele te dá vidência, te expande, te encerra, te afunda na lama do Woodstock ou te permeia com a fuligem molhada de garoa na Paulista, entende?

Sou filha do Woodstock e lavamos roupas em lavanderias Cinq à Sec e nos compomos desse capitalismo blasé e a liberdade burguesa que o dinheiro proporciona. Resumindo, o olho do boi do meu avô e a roupa que gira nas máquinas das lavanderias Cinq à Sec me afetam, não da mesma forma, não no mesmo sentido, mas tudo, agora, ao mesmo tempo me afeta profundamente.


MN: "Noves fora" as mentiras e as ilusões de ótica, o que sobra, nas letras e na vida?

LM: Quase nada mais sobra além de mais mentiras e mais ilusões de ótica, essa felicidade burguesa que insistimos em nutrir, que queremos desesperadamente que seja verdade, pois não há no que agarrar quando a existência puxa tudo pro fundo.


MN: Você acredita em escrita precoce, ou devemos considerar que Rimbaud não era lá tão maduro assim? Percebeu alguma mudança na tua dicção, após os trinta anos? O que é amadurecer a palavra, à margem de acumular cultura? Pra que serve este acumular, afinal? Diante do panorama que as artes apresentam [e você transita de Henry Miller a Pollock, acompanhando a sombra dos grandes perturbados], a cultura serve pra algo além de enlouquecimento ou desespero? Seria a poesia [sobretudo esta nossa, que já traz tanto em si acumulada] a tentativa de domar o cavalo da cultura, ou assimilá-lo em nós, como centauros?


LM: Não saberia te responder com certeza se há precocidade, mas acredito nela. Conheço dois escritores precoces: André Rodrigues e Juliano Guerra, com quem tenho contato há dois anos, escrevem feito gente grande. Aliás tem muito senhor dito escritor que não chega aos pés da escrita dos dois. Então não me sinto bem quando começam a criar parâmetros entre escrita e idade, ou seja, quanto mais velho melhor a escrita, disso discordo veementemente.

Acredito que o que acontece é a gente se encontrar em dado momento da vida, isso para cada pessoa acontece em alguma época. Aconteceu comigo por volta dos vinte e cinco anos, antes disso já escrevia, mas não imprimia estilo próprio, sentia uma vontade de responder tudo o que lia, era mais impulsiva e esse ímpeto, sim, creio ser da idade, hormônios!

O amadurecer da palavra é criar uma voz própria, mesmo que as vozes de seus ídolos e antecessores soem ecoantes em sua palavra. Ler outros para mim é bom em um único aspecto: o que o outro me conta e o que aquilo dialoga com que eu trago como opinião. Não absorvo frases para citá-las quando me valerem, ou como pensamentos impostos, acho isso perda de tempo e limite. Não aceito rédeas e acredito que a arte seja assim, a gente se acaba, se machuca como que para provar algo pra si, para chegar no âmago de um sentimento, para degustar algum momento de realidade, para a dor não há interpretação.

Perturbação, enlouquecimento, desespero são só palavras que definem algo dentro do dilacerante incompreendido oco, nada ou vazio que nos permeia.

Sou devota de Pollock, Magritte, Mondigliani, e de vários pintores, pois a pintura ignora em certa feita a palavra e nem por isso deixa de passar o mesmo sentimento de vazio, de perturbação e desespero que escritores como Miller, como Rimbaud, Lobo Antunes entre tantos outros, passam tão bem em suas palavras. Isso me mostra que não só a palavra tem o poder de imprimir angústias e medos e que esse sentimento não é só meu, é essência humana.


MN: Quais as utopias que ainda valem para Larissa Marques?

LM: Todas elas valem, não desisto, talvez por Cervantes, por Che, por Lamarca. Mas não deixo de carregar comigo o que ouvi de Saramago sobre as utopias, palavra que me corta e me traz um pouco para a realidade, compilo o mestre:

“Se eu pudesse riscava a palavra utopia dos dicionários. Mas claro não posso, não devo e nem o faria. Eu penso que nós, e há que reconhecer que os jovens são muito sensíveis à idéia da utopia. Mas como toda a gente sabe, digamos, a utopia é alguma coisa que não se sabe onde está. O próprio termo está a dizê- lo: U e topos. Portanto, algo que não se sabe onde está. Que se supõe que existe mas não se sabe onde está. Repara: há uma contradição interna no conceito de utopia, sobretudo no uso que se faz dele como algo que, de repente, toda a gente diz ou diz-se muitas vezes, todos nós precisamos de uma utopia. Eu acho que não precisamos de uma utopia.Então, quando digo que riscaria a palavra utopia e (....) se eu tivesse que substituí-la, então, enfim, substitui-la-ía por uma palavra que já existe: esta palavra é simplesmente amanhã.”

Como desistir do amanhã?


MN: Palavras recriam mundos ou, no máximo, casulos/ bolhas-de-música?

LM: As palavras recriam uma história, meu avô dizia que se você repete uma história mentirosa muitas vezes ela se torna verdade. Meu pai afirmou uma vez que derrubamos várias verdades inconsistentes com uma só mentira bem contada. Como sempre ouvi muito os dois, estou aqui criando e recriando mundos para ganhar a vida.


MN: A poesia ajuda a roçar o amor, ou revolve tudo que possa obstruí-lo? O que você encontrou no fundo da palavra tua? Era luz? Era úmido?

LM: A poesia é o que fazemos dela, como barro bruto que se esculpe figuras e sopra-se dentro dela para dar vida. A poesia é construção, inspiração e transpiração. A minha poesia é introspectiva, hermética às vezes, por ser esse mergulhar mesmo em mim.

Acho que no fundo encontra-se a essência humana, a matéria de que todos nossos somos feitos. Úmida sim, mas iluminada não.


MN: Artistas são construtores, são laicos-sacerdotes [alguns, não tão laicos...], ou trapezistas-por-sobre-a-calamidade? O que mais você tem visto, dentre estes e outros tipos? Em qual [ou quais] das categorias você se enquadra?

LM: Acho perigoso tentar se definir enquanto artista. Sou mutante. Não sei escrever coisa pueril, desvalida de valores ou algo que acrescente. Mas com minhas palavras não saberia definir minha escrita, prefiro que os outros o façam.

Combato muitos ditos escritores da atualidade que se entregam aquela ideia ultrapassada do antropocentrismo, iria mais longe o umbigocentrismo, acreditam cegos que por serem “artistas” estão além do julgamento, que sua obra está além, enquanto a obra é aquém para um leitor mais atento.


MN: Não achas você que "tu e você" podem/ devem ser misturados na poesia, sem qualquer pudor?

LM: Eu tenho esse hábito, minhas professoras de português que me perdoem, não tento mudar isso. Afirmei em algum poema que “odeiam que misture primeira e terceira pessoas, mas é vício, isso é sexo baby”. Que isso se aplique também ao você e o tu que no fundo são a mesma “pessoa”, anarquia? Não, diria que maneiras diferentes de dizer a mesma coisa, ou não?


MN: Faça de ti um retrato falado. [Não precisa ser 3 x 4; pode ser maior].

LM: Larissa Marques é uma entidade mal humorada, quando leitora é exigente e cuidadosa. Cuida de sua escrita como cuida de sua filha. Toma banho todos os dias e lava atrás das orelhas, mesmo nos dias mais frios. Fuma, bebe e não reza. Não gosta de maquiagem, embora concorde que a cara limpa não agrada todo mundo. Anda descalço, tem joanete e boca suja. Não espere dela um elogio que não seja verdadeiro, pois elogio não é moeda de troca, já os sorrisos são. Fala muito quando quer e nada quando não interessa. Bacante, despudorada, e se diz escritora, se é das boas, não sabe.

MN: Obrigado, Larissa.


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MN: Marcelo Novaes